sábado, 25 de outubro de 2008

Pra não dizer que não falei da amizade...


Duas pirralhas de 7 anos, na segunda série do primário.Uma delas, era uma menina de cabelos castanhos, que embora conversasse amigavelmente com todas as crianças da sala, não tinha o seu grupinho do recreio.A outra, era a menina loirinha que tinha acabado de voltar de Portugal, a qual todos os outros pirralhinhos julgavam como a menininha esnobe, porque ela estivera na Europa.Ela ficava sozinha num dos bancos no recreio, com um ar de que não precisava de ninguém.Era a lei da sobrevivência, quando uns te ignoram, você faz pior.Mas a primeira menina não estava nem aí.Ela foi até o banco e disse oi.O oi não foi respondido.
"POLAQUINHA SEM VERGONHA, QUEM VOCÊ PENSA QUE É PRA ME IGNORAR?" Ela pensou.Mas não disse nada, claro.Apenas sentou no banco e ficou ali, em silêncio, até o final do recreio.
O sinal bateu e a pirralhada começou a se recolher.
-Por que você ficou aqui comigo? - perguntou a loirinha.
-Porque você tava sozinha.

Daquele dia em diante, pelos três anos seguintes, ela não esteve mais sozinha.Não esteve mais sozinha no recreio, nas resoluções dos problemas de matemáticas, nos desenhos, nas árduas tarefas de passar as fases de Super Mario e Street Fighter e nas histórias em quadrinhos que criavam juntas pra o trabalho da escola.

Mas aí veio a mudança de escola.Os novos amigos.A Adolescência.
Por algum motivo bastante confuso e borrado no passado, mas envolvido em ciúmes besta, ambas voltaram a ficar sozinhas.
"Ela é mais amiga sua do que eu"
"Ótimo, ande com ela e me deixe em paz"
*Silêncio*.
*Olhares frios*
*Orgulho*

E assim foi o final da quinta série e o resto da sexta, onde somos mezzo crianças, mezzo aborrencentes, teimosos feito mulas e complicados pra tártaros.O único ano que estudaram em salas separadas desde que se conheceram.Procurando companhia em grupos dos quais não se sentiam parte, seguindo em frente.O silêncio, os olhares frios e o orgulho ainda estavam intactos.Até que o caminho estivesse limpo.Como uma hora ele ficou.

Era o final da sexta série e por algum motivo, a direção da escola resolveu tirar cada pirralho de sua sala para que todas as salas fossem até a igreja, assistir uma celebração de ação de graças ou coisa parecida.
O portal da escola havia se tornado um caos completo, com estudantes de quatro ou cinco idades diferentes se amarrotando uns nos outros.E a loirinha, de agora 12 anos, que havia bestamente lesionado o tornozelo no aquecimento do volley uma semana antes, mancava.
A outra garota, que tinha o seu grupo de amigos,do qual ainda não se sentia verdadeiramente parte, passava tranquilamente pelo tumulto, esperando sua vez de sair pelo portão congestionado de gente, até que sente uma mão grande e impiedosa lhe agarrar o ante-braço e lhe puxar para o lado.
A diretora da escola.Figura considerada chata, antipática, que lhe havia "contratado" pouco tempo antes para espionar os bagunceiros da sala e lhe fazer relatórios, estes, nunca entregues por ela.
Lhe olhou nos olhos, piscou algumas vezes e olhou pro lado, onde a garota arregalou os olhos ao ver a loirinha vestida numa jaqueta azul água lhe olhando estranhamente.

"Ela não consegue andar rápido.Você acompanha ela e não deixe que se machuque".
Não era um pedido, era uma afirmação de fato.
"WTF?", pensou a garota de cabelos castanhos "Virei babá agora?".Mas ainda assim não disse nada, apenas pensou, e acatou a ordem.
A ida foi silenciosa.A garota com os pés bons, ia alguns passos a frente, inquieta e impaciente.
"Ela disse pra você me esperar", resmungou a outra num apelo.
"Me desculpe", respondeu parando no lugar e esperando.Foram as únicas palavras trocadas na ida.
Cerimônia assistida, hora de voltar pra escola.7 ou 8 quadras de sofrimento pra alguém com o tornozelo lesionado.Mas agora iam devagar, como todos os alunos, tentando matar o tempo que teriam de aula se chegassem logo.
-E aí, o que você feito? - perguntou a loira casualmente.
Alguns minutos de silêncio se passaram.
-Ahn...nada. - O que não deixava de ser verdade.Era uma vida monótona.Tediosa.
-Ah...legal.
-Na verdade não tanto.
Era um comentário irônico.Talvez até rude.Mas Não parecia.Na verdade a ironia sempre estivera presente, de alguma forma um pouco divertida.
-Você tem andado com a E...*
-É.
-Ela é estranha,
-Por que?
-Fala demais.
-As vezes.Mas com certeza estou numa situação melhor que a sua - disse referindo-se ao grupo com quem a outra costumava passar os recreios.
-É, as vezes não é fácil.Mas ao menos a A...* é legal. - comentou referindo-se a uma, entre as 7 garotas que compunham o grupo.

Nesse momento a outra tagarela citada anteriormente veio correndo rua abaixo pulando nas costas na menina de cabelos castanhos e interrompendo a conversa, transformando-a num monólogo sobre as vitrines das lojas pelas quais passavam.

Alguma coisa havia mudado.Nas manhãs frias seguintes, a garota loira de jaqueta azul água que ficava sentada ao lado da porta de sua sala, dava oi a garota de cabelos castanhos e jaqueta cinza que passava por ali rumando a sua própria sala, e obtinha uma resposta agora diferente do dia em que se conheceram.
Os meses passaram e o contato foi sendo retomado aos poucos.No ano seguinte voltaram a estudar na mesma sala e não precisaram mais andar com grupos dos quais não se sentiam parte.Eram amigas novamente.Tinham outras amigas.Não eram exatamente populares como o grupo das principais patricinhas da sala, mas eram amigas que não brigavam por causa de garotos, de roupas ou de festas de aniversários mais "caras do que a sua" e isso era o mais importante.E logo estavam criando projetos juntas novamente, criando pequenos jornais, descobrindo o bom gosto pela música e pelo cinema e pasmem, até mesmo voltaram a jogar Street Fighter juntas.
E a vida continuava.E se apoiaram, se defenderam e estiveram ao lado uma da outra no momento das descobertas da vida, nos momentos dificeis e nos alegres também.Todos os outros brigavam, menos elas, porque um ano sem se falar já tinha sido o bastante né.
E o mundo podia explodir em pedaços e ainda estariam ali se apoiando incondicionalmente.Nas viagens mais insanas,nos momentos mais loucos, nas reviravoltas mais filhas da mãe que a vida dá.As brigas com namorado, os surtos, os sermões que periodicamente davam uma na outra.Entraram no inglês juntas.Passaram no vestibular juntas.Fizeram faculdade juntas (por um tempo).Conseguiram o primeiro emprego juntas e trabalham juntas, agora.
Nunca foram o tipo de amigas que escreviam cartas, assinavam cadernos ou pulavam agitando os braços no corredor da escola berrando a plenos pulmões "miguuuxaaaa".Mas foram o tipo de amigas que de alguma forma sabiam que nunca estariam sozinhas.
"Porra, como que eu vou viver sem você?"
"Não vai, não se livra de mim tão fácil".

E em algum fim de semana depois de uma discussão pós-sessão "cinema em casa", sobre alunos vagabundos e particularidades do salário de educadores, como duas professoras velhas que só sabem falar disso, pararam em silêncio.

"É.A gente estudou juntas a vida toda.Nunca brigamos".
"Menos na sexta série.Quando você ficou um ano sem falar comigo, mas não estávamos brigadas, claro, era apenas um hiatus"
"WTF?Eu fiquei um ano sem falar com você?"
"SIM!"
"É, eu nem lembrava.Mas você que não falou comigo!..."para e pensa "Por que mesmo a gente não se falava?"
"Até hoje não sei direito.Você que deixou de falar comigo.Devia saber"
"Assim... sei lá."
*silêncio*
-Mas e aí, será que a gente se livra das turmas de I-Spy no próximo semestre?
-Tomara, porque aquilo tá...AHHHH, você viu o novo filme do Guillermo DelToro que saiu?!
-NO WAY?!Qual o nome!?Vou baixar!!
-Me empresta depois hein!




Obrigada dona diretora do tempo da sexta série.


*Os nomes foram omitidos por razões éticas,
*Os diálogos são os mais fiéis do real o possível, mas a licença poética está presente, claro.

Um comentário:

Déh disse...

Não sei pq mais algo me soou bastante familiar.
A gente as vezes briga e machuca a quem mais amamos sem querer. É dificil assumir que erramos e nos perdoarmos por esse erro, mas um dia acabamos vendo que nenhuma magoa e resentimento pode ser maior que o AMOR e CARINHO que sentimos por aqueles que amamos.
A gente só briga com quem AMA e isso é fato. Melhor seria não brigar ou magoar, mas o ser humano só aprende pela dor.
Espero que as duas meninas tenham enfim encontrado o caminho e se perdoado mutuamente e que principalmente se perdoem.